Amigo é tudo nessa vida. Mas nem todos tem um. Por quê?
Manu passeia em uma loja e lembra que será aniversário de sua melhor amiga quando passa na seção de presentes. Começa a olhar e então descobre que a data já passou e ela se esqueceu completamente. Pior, essa não foi a primeira vez. Fica torcendo para ser perdoada, mas a amiga já sabe que Manu é assim mesmo. Afinal, são mais de vinte anos de convivência e ela conhece bem cada sintoma do TDAH que ambas tanto discutiram, muitas vezes entre lágrimas de Manu, inconformada de como as outras amigas somem e ela nunca entende o porquê. E isso acontece desde a infância.
Rafael combina uma cerveja com os amigos na quinta-feira, mas não marca na agenda porque, segundo ele, se tiver uma agenda vai esquecer de olhar. Pronto, o combinado ficou perdido nos seus devaneios e ele confunde a quinta com a sexta. Fica horas no bar esperando a turma, até que liga pra um deles e descobre que “foi ontem”. Os amigos nem ligaram no dia combinado porque já desistiram, eles sabem que seu celular está sempre esquecido em algum lugar e ele nunca atende. Um desencontro atrás do outro, alguns ressentimentos e Rafael acaba ficando cada dia mais desconectado dos amigos. Sem falar nas vezes em que ele aparece, fica desligado da conversa, depois faz algum comentário nada a ver e acaba sentindo a rejeição do grupo. Sentimento muito ruim que só incentiva o isolamento que ele experimenta desde criança.
Exemplos como esses mostram como os portadores de TDAH enfrentam barreiras quase intransponíveis para fazer amigos e manter as amizades. As dificuldades inerentes ao transtorno se revelam desde os primeiros contatos, ainda na infância, em comportamentos inadequados que podem afastar colegas e amigos, como: furar fila, dizer tudo que vem à cabeça, perder brinquedos e não perceber mudanças sutis e não verbais nas brincadeiras e conversas.¹ As barreiras começam em estabelecer contatos, pela baixa autoestima que inibe a socialização, até a continuidade dos relacionamentos pessoais, com os inevitáveis equívocos provocados pela falta de habilidades sociais e de comunicação, interpretação errada dos sinais de linguagem corporal e conduta muitas vezes imprópria.² Essas dificuldades se revelam em pequenos e grandes detalhes da convivência, que são comuns no cotidiano das crianças e adolescentes com TDAH e se não forem devidamente contornadas acabam interferindo em toda a sua vida adulta:
- A falta de empatia faz com que seja mais difícil entender os outros. Isso acontece porque é mais complexo para eles entender os sinais de comunicação e diferenciar um sorriso de uma cara amarrada.
- Como são um tanto diferentes e por vezes engraçados, até conseguem atrair amigos, mas logo são rejeitados porque eles não aceitam nem compreendem seus comportamentos impulsivos ou distraídos. E tudo contribui ainda mais para a baixa autoestima.
- Por sua vez essa baixa autoestima leva a enfrentamentos e brigas, porque eles se sentem incomodados com a rejeição e não sabem como resolver os conflitos.
- A inabilidade de convivência social se revela também em jogos, quando invadem o espaço dos outros, não conseguem esperar a sua vez e também não sabem perder.
- E, para completar, a maturidade acontece bem mais tarde, resultando que os adolescentes precisam de muito apoio dos adultos para crescer de verdade.
Amigo é para essas coisas!
Sim, quem já ficou amigo de verdade compreende tudo e até ajuda o outro a superar cada uma dessas dificuldades. Mas até chegar lá ambos passarão por provas tão difíceis como um “triatlo”, em que os participantes precisam vencer os desafios em diferentes modalidades. O troféu é para poucos, mas o valor é imenso. Um amigo de verdade tem um papel muito mais destacado para os portadores de TDAH do que para qualquer outra pessoa. Primeiro porque ele inevitavelmente terá poucos amigos. E depois porque sabe que pode mesmo contar com eles, já que aceitam conviver com suas dificuldades e apoiam cada etapa de superação. Mas é na infância e adolescência que ter amigos se torna ainda mais importante porque já está comprovado que os amigos protegem contra a vitimização³ e ajudam as crianças nos seus processos cognitivos. Considerando que desde a infância o portador de TDAH enfrenta tantas barreiras, os pais assumem papel relevante para ajudar essas crianças a fazer amigos e facilitar a convivência. Mas como eles podem ajudar? Aqui estão algumas formas de apoiar as crianças desde cedo para que elas consigam se conectar, fazer novos amigos e manter essas amizades ao longo da vida4:- Convidar amigos para a sua casa ou para passeios em grupo e promover encontros, incentivando jogos e outras atividades. Evitar atividades muito competitivas.
- Mostrar à criança como deve comportar-se nas situações concretas, como esperar a vez do jogo, não invadir o espaço do outro, incentivando a cooperação e a reciprocidade. Treinar uma habilidade por vez, observando as reações inadequadas e mostrando com exemplos.
- Buscar treinamento e orientação de como desenvolver habilidades para ajudar efetivamente a criança, para evitar conflitos. Estar conscientes de que esse tipo de intervenção deve ser feito na infância porque na adolescência tudo se torna mais complicado.
- Incentivar atividades ao ar livre, com períodos de descanso e tempo de isolamento reduzidos.
- Incentivar a criança para que faça amigos, principalmente na escola, para que ela possa ampliar seus interesses, combater o tédio e a solidão. Sempre com a supervisão de um adulto para apoiar nas dificuldades de relacionamento.
Referências:
1. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-34822010000100003
2. http://www.tdahytu.es/el-tdah-los-amigos-dificultades-consejos/
3. http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v30n3/v30n3a02.pdf4.
4. https://www.fundacioncadah.org/web/articulo/la-importancia-de-la-amistad-en-el-tdah.html
Julho/2020 C-ANPROM/BR//1996